quinta-feira, 13 de junho de 2019

Meus heróis


Meus heróis
(A. M. de Godoy T.)

Há desejos que só encontram explicações nas lembranças da infância. É o caso da minha parreira de uva. Foi preciso mudar o acesso da entrada da casa para que ela pudesse ser instalada. Eu não queria uma parreira em qualquer lugar, tinha que ser numa das entradas da casa, como aquela parreira da minha infância, na casa que sempre me recordo, morada daqueles que me foram tão caros.
A parreira é só um detalhe, um estopim para tantas reminiscências dos meus sete, oito anos de idade passados junto daqueles dois que os via como grandes demais para o meu pouco mais de um metro de altura, velhos demais para a minha primeira década de existência e cheios de sabedorias que me ajudava a desvendar os mistérios da vida.
Eles, meus avós, moravam numa casa grande com quartos que davam acessos a salas, cozinha que se abria para quarto, varandas, quintal com saídas para a rua e outros cômodos apartados da casa o que revestia aquele lar de um encanto que beirava a magia. Adorava aquela casa. Adorava aqueles dois. 
Vivia a maior parte do dia por lá, vagando pelos quartos, admirando fotos de parentes que não conhecia, sentindo o aroma perfumado da cozinha, subindo em árvores, vasculhando o quintal a procura de sei lá o quê. Muitas vezes chegava para jantar e ia ficando e ia dormindo, não sem antes ouvir as histórias de meu avô, aninhada naquele corpo forte, de homem grande, que para mim era tão macio como um grande travesseiro. Eram histórias que ele inventava, de personagens locais, modificadas de propósito sempre que as contava, onde eu prontamente intervinha, corrigindo-o, o que muito divertia minha avó que nos fazia companhia sentada sempre na mesma cadeira e no mesmo lugar da varanda que dava para a rua da cidade. Do colo do meu avô olhava para ela, seus cabelos acinzentados, as pernas cruzadas, as mãos entrelaçadas e apoiadas sobre o joelho direito, balançando a perna no ritmo da narrativa da história. Ao seu lado, apoiada na parede, sua muleta de madeira em tom claro. Eu ouvia meu avô enquanto meus olhos passeavam por aquela muleta, indo de baixo — onde tinha um revestimento de borracha, para cima — onde tinha uma almofada de veludo vermelho desbotado pelo suor de muitos anos de uso. Assim adormecia, embalada por aquela voz e atordoada por aquela cena.
Fui cercada de mimos por aqueles dois. Quando minha avó fazia bolachas, biscoitos e pães,  sempre fazia alguns especiais para mim, quer no tamanho, formato ou recheio.
Fui querida demais por aqueles dois. Numa das entradas da casa que se abria para o quintal havia uma varanda com uma grande parreira construída com pilares de alvenaria e cobertura de canos, que todo ano ficava carregava de cachos. Era a minha parreira! Toda minha! Mal as uvas começavam amadurecer eu beliscava os cachos, procurando pelas maduras. Isso fazia meu avô delirar de alegria e comentar, sempre que me via por perto, com aquele seu sorriso largo de felicidade, que aqueles cachos pinicados eram coisa de um sanhaço, de um grande e enorme sanhaço que vivia por ali e que ele, um dia, faria uma armadilha para apanhá-lo e o levaria para bem longe dali. Como gostaria de dizer a ele que o sanhaço voou para muito longe e que nunca mais saboreou uvas tão deliciosas como aquelas. 
São tantas imagens vindas daqueles dois: meu avô pendurando o chapéu e passando a mão direita sobre os cabelos quando entrava em casa; minha avó de muletas, andando pela casa com dificuldades; meu avô cortando lenha com o machado, suando em bicas; minha avó tirando seu cochilo depois do almoço, de apenas cinco minutos, como ela costumava dizer; meu avô ensinando o pessoal da cidade a dançar a quadrilha da festa junina; minha avó brincando com o papagaio, carinhosamente chamado de mulata; meu avô à mesa, brincando com os talheres enquanto esperava o almoço; minha avó costurando e pedindo para eu enfiar a linha na agulha.
Eram-me especiais aqueles dois. Com meu avô conheci acampamentos ciganos, o cotidiano da vida circense. Com minha avó tomei minha primeira gota de chá. Com meu avô conheci as festas de reis, as congadas, as danças de catira. Com minha avó conheci as procissões, as quermesses, as datas religiosas e aprendi que há um nome de santo para cada dia do ano. Com meu avô conheci as delícias do cotidiano da minha cidade. Com minha avó conheci a alegria das músicas italianas, a poesia dos sons. Com meu avô aprendi a reconhecer os pássaros e que misturar manga com leite não mata. Com minha avó escutei histórias de parentes que nunca vi. Com meu avô aprendi como usar as cunhas de ferro para abrir toras de madeira. Com minha avó aprendi a pregar botão sem dar nó na linha.
Foram-me essenciais aqueles dois. Devo a eles parte da minha educação, do meu apreço pelas coisas simples  e muito da felicidade que tive na primeira década da minha vida.
Não convivi com meu avô o tanto que gostaria. Ele se foi cedo demais, quando eu mal entrava na adolescência. 
Não convivi com minha avó o quanto poderia. A vida nos conduz por alguns desvios que nunca nos devolvem para a mesma estrada.
Finalmente, depois de muito tempo, tenho minha parreira. Vou andar sob ela e quando as uvas começarem amadurecer vou esperar por aquele sanhaço. Se ele virá, não sei. O que sei é que mesmo agora, quando me aproximo da idade que eles tinham naquela época, continuo com a imagem de que eles eram grandes demais, velhos demais, sábios demais, como convêm aos verdadeiros heróis.