quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Tatu e lagartos


Tatu e lagartos
(A. M. de Godoy T.)

Teve um ano que apareceu um tatu que gostava de andar no gramado perto da cozinha. Tornou-se tão manso que caminhar ao seu lado não lhe causava medo. Eram momentos ternos, cheios de alegria e de orgulho por ter aquele bicho por perto. Mas confesso que nem tudo era amor. Quando ele cavoucava os canteiros de flores a procura de sei lá o quê e destruía ou arrancava as mudas recém plantadas ou aquelas que com muito esforço e dedicação cresciam lindas e saudáveis, eu tinha momentos explícitos de raiva e ressentimentos com aquele bicho. Muitas vezes cheguei a desejar que ele fosse embora, que arranjasse outro canto para morar e deixasse minhas flores em paz. Tenho um pouco de remorso quando me lembro disso porque penso que de certa forma ele me ouviu. Quando dei por sua falta, por vários dias consecutivos, procurei entre as moitas de flores, pelo gramado, pela mata e... nada. Deixei frutas espalhadas pelo gramado por onde costumava passear com a esperança de atraí-lo, mas sem sucesso. Em todas essas tentativas eu lhe pedia perdão e prometia plantar margaridas e boca-de-leão e muitas outras flores, todas num enorme canteiro, todinho dele, para arrancá-las à vontade, desde que me perdoasse e voltasse para casa. Era quase uma súplica!
Nada funcionou. Por castigo, como costumo pensar nas horas que estou triste, ou por fatalidade, quando sou mais realista sobre nosso País de gente ignorante e sem oportunidades, encontrei seu casco jogado perto da cerca do vizinho, gente que pensa que se é bicho, é pra se comer. E assim aquele pobre animal serviu muito bem àquela pobre família que nem teve preocupação em disfarçar, deixando o que não lhe serviu de pasto às vistas de quem quisesse ver.
Estou me lembrando desse fato agora porque com o início da primavera, quando os dias são mais quentes e ensolarados, aparecem vários lagartos, também chamados de teiús. Alguns são enormes, com cerca de um metro. Andam rastejando seu corpo volumoso e de aspecto duro e áspero por todos os cantos a procura dos frutos das amoreiras, pitangueiras e ameixeiras que caem de maduros no gramado. São rápidos, correm assim que sentem a presença humana, serpenteando seu corpo numa cena bastante grotesca.
Nessa época eles deixam as tocas, onde hibernam a maior parte do ano, e saem para tomar sol, se alimentar e procriar, e assim ficam até o final do verão. Estão por toda parte. Escondidos nos muros de pedras, entre arbustos, embaixo de galhos de árvores e outros lugares bizarros.
De manhã, quando o sol fica mais forte, eles saem para lagartear. Muitos escolhem ficar sobre os canteiros de flores. O resultado disso são canteiros com flores amassadas, pisoteadas e, consequentemente, feias. Quando passo por perto posso sentir as flores pedirem por socorro e por um instante chego a ter maus pensamentos sobre esses bichos, parecidos com aqueles que eu tinha pelo tatu. Mas como ainda estou traumatizada com a morte deste bicho, imediatamente desvio estes pensamentos para outros mais nobres. Chego a murmurar para as flores maltratadas que tenham paciência, que os lagartos não ficarão por muito tempo, que assim que terminar o verão eles voltarão para suas tocas, e então eu as ajudarei a se recuperarem. Farei uma minuciosa poda, retirando galhos amassados ou quebrados. Replantarei o que for preciso e as compensarei com uma dose extra de esterco de gado, bem curtido e rico em húmus. Rogo-lhe que sejam benevolentes, que façam amizades com esses visitantes e encarem o repouso deles sobre elas como uma demonstração de carinho. Como um desajeitado, porém, afetuoso abraço. Não quero que eles se sintam mal-amados ou indesejados e se bandeiam para os lados da vizinhança. Faço de tudo para que se sintam bem hospedados no jardim. Dou-lhes ovos frescos e pedaços de frutas, sempre fresquinhas e saborosas até se fartarem. Tento ser uma boa anfitriã e me acho com capacidade de ser uma mensageira da paz, tarefa que tento cumprir entre estes dois reinos da natureza. Mas, quando me lembro que o bicho homem faz parte de um desses reinos e, como se não bastasse, a ele foi dado o privilégio de estar no topo da cadeia alimentar, é então que eu me lembro do tatu, e entristeço.






domingo, 2 de setembro de 2018

Devaneios (III)


Devaneios (III)
(A.  M. de Godoy T.)

Nos últimos três meses choveu muito pouco e o nível do lago abaixou setenta centímetros. A parte  do lago que se estende como uma lâmina d’água sobre o banhado  ficou com o solo exposto. A argila do fundo ressecou e rachou em gretas profundas e largas, como um mosaico onde se ajuntam peças de vários formatos, na cor marrom, separadas pelas linhas do vazio. Da varanda da casa se podia ver este lado do lago com seu imenso tapete, bonito de se ver, triste por saber por quê. A chuva que caiu duas semanas atrás normalizou o nível do lago. O local antes exposto agora está submerso e a vida renasce neste alagado. Juncos, (juncaceae) uma espécie parecida com gramíneas são os primeiros a despontar suas hastes, seguidos das ervas de bicho ( Polygonum hydropiper) que  alastram suas ramagens.  Em pouco tempo tomarão conta de toda a área outrora ressecada. As pontas daqueles se encherão de sementes e destas brotarão pequenas flores amarelas. Ambas são espécies típicas de áreas alagadas e se atrevem, também, a proliferar na borda do gramado que margeia o lago, servindo-se da umidade que campeia estes terrenos. Ali são continuamente retiradas mas retornam triunfantes e vigorosas, desafiadoras e vencedoras. 
Não foi a primeira e nem será a ultima vez que o nível do lago abaixou dando lugar ao tapete de mosaico marrom e que depois, com as chuvas, tudo se modifica tornando o lugar  atrativo para pássaros, insetos, sapos, cobras, entre outros habitantes.
É assim a vida nesta parte do lago. A natureza segue seu curso e sem interferência humana se ajeita como deve ser. 
Com ela tento aprender. A vida me surpreende com situações que vem e vão. Algumas em sucessivas repetições. Acredito não ser boa aluna. Sempre acho que acabam como não deveria ser.