quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Tatu e lagartos


Tatu e lagartos
(A. M. de Godoy T.)

Teve um ano que apareceu um tatu que gostava de andar no gramado perto da cozinha. Tornou-se tão manso que caminhar ao seu lado não lhe causava medo. Eram momentos ternos, cheios de alegria e de orgulho por ter aquele bicho por perto. Mas confesso que nem tudo era amor. Quando ele cavoucava os canteiros de flores a procura de sei lá o quê e destruía ou arrancava as mudas recém plantadas ou aquelas que com muito esforço e dedicação cresciam lindas e saudáveis, eu tinha momentos explícitos de raiva e ressentimentos com aquele bicho. Muitas vezes cheguei a desejar que ele fosse embora, que arranjasse outro canto para morar e deixasse minhas flores em paz. Tenho um pouco de remorso quando me lembro disso porque penso que de certa forma ele me ouviu. Quando dei por sua falta, por vários dias consecutivos, procurei entre as moitas de flores, pelo gramado, pela mata e... nada. Deixei frutas espalhadas pelo gramado por onde costumava passear com a esperança de atraí-lo, mas sem sucesso. Em todas essas tentativas eu lhe pedia perdão e prometia plantar margaridas e boca-de-leão e muitas outras flores, todas num enorme canteiro, todinho dele, para arrancá-las à vontade, desde que me perdoasse e voltasse para casa. Era quase uma súplica!
Nada funcionou. Por castigo, como costumo pensar nas horas que estou triste, ou por fatalidade, quando sou mais realista sobre nosso País de gente ignorante e sem oportunidades, encontrei seu casco jogado perto da cerca do vizinho, gente que pensa que se é bicho, é pra se comer. E assim aquele pobre animal serviu muito bem àquela pobre família que nem teve preocupação em disfarçar, deixando o que não lhe serviu de pasto às vistas de quem quisesse ver.
Estou me lembrando desse fato agora porque com o início da primavera, quando os dias são mais quentes e ensolarados, aparecem vários lagartos, também chamados de teiús. Alguns são enormes, com cerca de um metro. Andam rastejando seu corpo volumoso e de aspecto duro e áspero por todos os cantos a procura dos frutos das amoreiras, pitangueiras e ameixeiras que caem de maduros no gramado. São rápidos, correm assim que sentem a presença humana, serpenteando seu corpo numa cena bastante grotesca.
Nessa época eles deixam as tocas, onde hibernam a maior parte do ano, e saem para tomar sol, se alimentar e procriar, e assim ficam até o final do verão. Estão por toda parte. Escondidos nos muros de pedras, entre arbustos, embaixo de galhos de árvores e outros lugares bizarros.
De manhã, quando o sol fica mais forte, eles saem para lagartear. Muitos escolhem ficar sobre os canteiros de flores. O resultado disso são canteiros com flores amassadas, pisoteadas e, consequentemente, feias. Quando passo por perto posso sentir as flores pedirem por socorro e por um instante chego a ter maus pensamentos sobre esses bichos, parecidos com aqueles que eu tinha pelo tatu. Mas como ainda estou traumatizada com a morte deste bicho, imediatamente desvio estes pensamentos para outros mais nobres. Chego a murmurar para as flores maltratadas que tenham paciência, que os lagartos não ficarão por muito tempo, que assim que terminar o verão eles voltarão para suas tocas, e então eu as ajudarei a se recuperarem. Farei uma minuciosa poda, retirando galhos amassados ou quebrados. Replantarei o que for preciso e as compensarei com uma dose extra de esterco de gado, bem curtido e rico em húmus. Rogo-lhe que sejam benevolentes, que façam amizades com esses visitantes e encarem o repouso deles sobre elas como uma demonstração de carinho. Como um desajeitado, porém, afetuoso abraço. Não quero que eles se sintam mal-amados ou indesejados e se bandeiam para os lados da vizinhança. Faço de tudo para que se sintam bem hospedados no jardim. Dou-lhes ovos frescos e pedaços de frutas, sempre fresquinhas e saborosas até se fartarem. Tento ser uma boa anfitriã e me acho com capacidade de ser uma mensageira da paz, tarefa que tento cumprir entre estes dois reinos da natureza. Mas, quando me lembro que o bicho homem faz parte de um desses reinos e, como se não bastasse, a ele foi dado o privilégio de estar no topo da cadeia alimentar, é então que eu me lembro do tatu, e entristeço.






domingo, 2 de setembro de 2018

Devaneios (III)


Devaneios (III)
(A.  M. de Godoy T.)

Nos últimos três meses choveu muito pouco e o nível do lago abaixou setenta centímetros. A parte  do lago que se estende como uma lâmina d’água sobre o banhado  ficou com o solo exposto. A argila do fundo ressecou e rachou em gretas profundas e largas, como um mosaico onde se ajuntam peças de vários formatos, na cor marrom, separadas pelas linhas do vazio. Da varanda da casa se podia ver este lado do lago com seu imenso tapete, bonito de se ver, triste por saber por quê. A chuva que caiu duas semanas atrás normalizou o nível do lago. O local antes exposto agora está submerso e a vida renasce neste alagado. Juncos, (juncaceae) uma espécie parecida com gramíneas são os primeiros a despontar suas hastes, seguidos das ervas de bicho ( Polygonum hydropiper) que  alastram suas ramagens.  Em pouco tempo tomarão conta de toda a área outrora ressecada. As pontas daqueles se encherão de sementes e destas brotarão pequenas flores amarelas. Ambas são espécies típicas de áreas alagadas e se atrevem, também, a proliferar na borda do gramado que margeia o lago, servindo-se da umidade que campeia estes terrenos. Ali são continuamente retiradas mas retornam triunfantes e vigorosas, desafiadoras e vencedoras. 
Não foi a primeira e nem será a ultima vez que o nível do lago abaixou dando lugar ao tapete de mosaico marrom e que depois, com as chuvas, tudo se modifica tornando o lugar  atrativo para pássaros, insetos, sapos, cobras, entre outros habitantes.
É assim a vida nesta parte do lago. A natureza segue seu curso e sem interferência humana se ajeita como deve ser. 
Com ela tento aprender. A vida me surpreende com situações que vem e vão. Algumas em sucessivas repetições. Acredito não ser boa aluna. Sempre acho que acabam como não deveria ser. 

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Jardinar é preciso

Jardinar é preciso
(A. M. de Godoy T.)

Amo jardinar e amo jardins!
Conheço pouquíssimas pessoas que gostam de jardinar e muitas que gostam de jardins, ma
s quem conhece o assunto sabe que entre aquele e este gosto vai uma grande diferença.
Fico emocionada quando encontro um jardineiro de vocação, por isso quero falar de uma cena que presenciei recentemente. Uma senhora idosa, que presumi ter passado em muito a casa dos oitenta, jardinava com uma menina de pouco mais de dez anos, que supus ser sua parenta. Elas plantavam um ipê no jardim em frente à casa. A senhora instruía, a menina obedecia. Eram gestos de amor a rodear aquela muda de dois palmos de altura. Um poema silencioso, a quatro mãos, de gestos de carinhos. Vale lembrar que ipê demora em média de quatro a cinco anos para florescer, nem é muito tempo, mas considerando a idade da senhora pensei que talvez ela nem alcançasse as primeiras floradas. Mas jardineiro não se preocupa com isso. A ele pouco importa se desfrutará do frescor da sombra ou se verá suas flores ou se comerá do fruto da árvore que plantou. Jardineiro não planta apenas para si, planta para os outros. O tempo do jardineiro é o futuro, mesmo que para ele o futuro não ultrapasse o amanhã.
Aquela senhora era uma jardineira de vocação ensinando uma jovem a como jardinar.
Foi então que imaginei um mundo diferente, onde jardinagem fosse matéria obrigatória nos curriculum escolares. Faríamos provas de construir canteiros, de semear margaridas, petúnias, de plantar jabuticabeiras, angicos, cedros, e qualquer outra planta, de livre escolha e gosto. Teríamos lição de como plantar e cultivar em qualquer lugarzinho que carecesse de verde e cor. Nossa morada seria, obrigatoriamente, rodeada de jardins. Os terrenos baldios e as áreas degradadas seriam reflorestados. Inundaríamos-nos de tantas plantas e de tantos desejos de plantar que de nossos corações brotariam avencas, samambaias, palmeiras, cerejeiras, mognos... e  flores, muitas flores.
Quem dera pudesse ser assim! Seríamos diplomados jardineiros, de coração e vocação!
E o mundo seria um só jardim. E voltaríamos ao início, no princípio, quando o Criador fez a terra produzir relva, e as ervas deram sementes, e as árvores frutificaram e deram frutos segundo as suas espécies, e viu Ele que isso era bom.


terça-feira, 14 de agosto de 2018

As estações


As estações
(A. M. de Godoy T.)

Senhor
Tudo está pronto para o espetáculo de cor.
Os dias se enchem de mais luz.
O céu de mais azul.
Os botões, prontos a abrir em flor,
Elevam-se para o céu como mãos prestes a se espalmar em seu louvor.
É o milagre do colorido, do perfume, da luz.
É a Terra em sedução.
Menina-moça no auge do esplendor.

Senhor
A terra ressequida está sedenta,
O verde pende, se debruça
E pela gota que restou do orvalho ele procura.
Mande o aguaceiro inesperado
Com relâmpagos e trovões passageiros,
Como véu transparente
A se descortinar frente ao sol inclemente.
Mande o aguaceiro cobrir a Terra.
E a torne fecunda, em espera
Pelo milagre da germinação.
E a deixe encantada, aguardando
Pelo seu rebento que despontará do chão.

Senhor
Os dias e noites passam calmos
O amarelo tinge os montes, os campos, os vales.
Há um bailado de folhas no ar
Outras repousam no chão
Outras tantas logo mais cairão.
O vento assobia uma melodia suave,
A murmurar que é chegada a hora,
O momento exato.
A Terra está pronta.
A colheita se aponta.
É a fartura.
O parto
Do sagrado.

Senhor
Dias e noites são desiguais
Tudo se recolhe, se retrai.
O verde se apaga, e esmorece
O colorido no horizonte.
Pássaros e animais se escondem.
A terra, essa senhora,
Não experimenta mais do cio
E adormece, coberta pelo frio.
E hiberna, e repousa, e esquece,
E morre, e renasce,
E um novo ciclo recomeça
Assim e sempre, como uma prece,
Amém.



sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Maria-sem-vergonha


Maria-sem-vergonha
(A. M. de Godoy T.)

Muitas flores são conhecidas popularmente por seus nomes bizarros, curiosos, engraçados e até mesmo excêntricos. Maria-sem-vergonha é uma delas e bem que faz jus a este nome, pois é mesmo desavergonhada. Cresce em qualquer lugar, tanto pode ser a pleno sol ou a meia sombra, se reproduz com facilidade, não exige cuidados especiais, invadem mata fechada se aninhando debaixo de árvores, extrapolam cercas, muros, jardins se intrometendo entre outras flores, enfim... de comportamento que bem lhe assegura o nome e até lhe impõem um outro mais vexatório: invasora. E tem mais, por apresentar crescimento muito rápido, faz jus também ao seu nome científico:  Impatiens que em latim quer dizer impaciente.
Mas tem também uma característica que lhe garante nomes mais carinhosos.  Possuem cápsulas onde se alojam as sementes que se arrebentam ao menor contato, lançando longe as sementes, e por isso são chamadas de beijo ou beijinho.
Espécie nativa do leste da África, as primeiras mudas foram trazidas por D. Pedro I quando veio com a Imperatriz Maria Leopoldina para o Brasil e plantadas no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Rapidamente se aclimataram e se proliferaram nos jardins do Brasil. Dai pra popularizar seu nome foi um pulo pois diziam que “As flores de Maria (Leopoldina) davam em todo lugar, eram flores sem vergonha”. Verdade ou não, a justificativa é bem apropriada.

Maria-sem-vergonha                    
(A. M. de Godoy T.)

Flor singela                                                    
Que alegra
Os atalhos                                           
E os largos
Dos caminhos                                       
Onde passo.

Flor brejeira

Flor campeira, 

Branca                                                   
E vermelha
Cor-de-rosa
E amarela.

Flor faceira
Espaçosa,
Esparrama
E rasteja,
Sob a mata,                                                Sobre as pedras.                         

Cobre campos
Ribanceiras
Não tem solo
Nem tem onde
Onde cai
Cresce aos montes

E aqui junto da fonte
Entre tantas
São tão belas.
São beijinhos de arcanjos,
Querubins e serafins
No céu do meu jardim.



segunda-feira, 6 de agosto de 2018

A simplicidade é o último grau da sofisticação


A simplicidade é o último grau da sofisticação
(A. M. de Godoy T.)

Nos meses de maio a agosto, onde a chuva é mais escassa, é que elas aparecem. Acompanho o processo de suas aparições geralmente concentrado nos canteiros de couves, rúculas, brócolis. Primeiro são os ovos, depositados na parte das folhas voltada para o solo. Pequenos pontinhos amarelos dispostos um ao lado do outro, de forma milimétrica e precisa, a cobrir uma área quadrada, quando muito, de um centímetro de lado. Ali ficam alguns dias até se transformarem em lagartas, pequenos filetes cinza e cheios de pernas que se espalham pelos canteiros e se movimentam sem parar por sobre as folhas. São de apetite voraz. Em pouco tempo transformam canteiros ricos em folhas num lugar de talos espetados no chão. Então desaparecem, se recolhem para a última etapa e a metamorfose acontece. E quando percebo: do feio se fez o belo, do cinza se deu a cor, da terra se foi pro ar.
É assim. Todo ano, nesta época o jardim recebe milhares de borboletas. Pela manhã, assim que o sol se põe a brilhar, elas se põem a bailar. São de vários tamanhos e cores e desenhos. Vistas de longe são como pétalas de flores levadas pelo vento. De perto são como pinturas animadas, inquietas e agitadas.  Pousam nas flores, nos frutos, no chão, e até nos meus braços suados para sorver o sal do meu corpo. Também voam em bando pra pousar em algum lugar onde permanecem paradas, com as asas fechadas formando um plano que se ergue na vertical. A um leve movimento de folhas ou galhos ou mesmo uma golfada de vento elas levantam voo e se espalham. Voam desgovernadas e de repente se agregam e pousam em outro lugar. Ali ficam por instantes e novamente, por conta de algum movimento ou barulho, ou sem motivo nenhum, se dispersam. E assim passam o dia, e desse vai e vem, embora o final seja conhecido, são sempre surpreendentes o desarranjo, a coreografia e o reencontro. Ano após ano acompanho este espetáculo que se repete, e que nunca é igual, embora não pareça diferente.  
Este ano, excepcionalmente, predominou um só tipo. Pequenas, não mais de cinco centímetros, na cor amarelo alaranjado e com finos traços pretos a lhes realçar o contorno das asas e outras linhas internas. Apenas isso. Não que fossem feias, mas simples demais, um pouco sem graça, achei, acostumada que estava a ver desenhos mais elaborados. Quando isolada, assentada sobre uma flor, passava despercebida, confundida com uma folha seca ou murcha. Fiquei desapontada e achei que este ano não despertariam interesse nem chamariam atenção. Ledo engano. A homogeneidade da cor, do tamanho e desenho realçou a coreografia do bailado. Tornou-o mais atraente e mais delicado e mais harmonioso e mais belo. Tornou-o perfeito. Foi um despertar para a verdade do mestre da Vinci, que achei apropriada parar dar título a este texto.



sábado, 28 de julho de 2018

Amores mais que perfeitos

Amores mais que perfeitos
(A. M. de Godoy T.)

Ter um jardim bonito o ano todo é uma trabalheira danada. Jardinar cansa o corpo, machuca as mãos, arranha pernas e braços e é preciso muito trabalho e esforço para deixá-lo harmonioso e florido. Eu amo jardinar e tenho a felicidade de ter um jardim.
Meu jardim, assim como todos que conheço, segue as regras da natureza e explode em cores e aromas na primavera, assim conhecida, com muita propriedade, como estação das flores. Porém, quem ama jardins encontra neles a beleza das outras estações. Há a beleza do outono, embalada pelo vai e vem das folhas que caem pelo chão e são levadas pelo vento. Há a beleza destemida do verão, que suga do calor um colorido de energia. Mas de todas, é a beleza do inverno que me causa uma alegria especial. Talvez por finalizar o ciclo das estações, metáfora da maturidade a qual sigo em paralelo.
O fato é que as flores que se abrem nessa época me lembram amores maduros, que explodem em sabedoria e por isso mesmo sabem se colorir com os mais belos matizes. São mais que perfeitos!
Assim está meu jardim agora. Embora o verde ainda predomine nos canteiros de lírios (lilium), agapantos (agapanthus africanus), copos-de-leite (zantedeschia aethiopica),  nas iris-azuis (neomarica caerulea) e tantas outras variedades que se enchem de folhagens exuberantes e fartas esperando a próxima estação para abrirem em cores, algumas espécies, típicas da estação do frio já floresceram e são elas os astros e estrelas deste show de cheiro, cor e magia.
Gosto de andar pelo jardim no final do dia, antes que a tarde esmoreça, momento em que a iluminação é pano de fundo perfeito para esta época do ano.
Passo pelos   buquês-de-noiva (spiraea cantoniensis  com seus galhos longos e flexíveis cobertos de minúsculas flores brancas e vejo-os abraçados com as ramagens das flores de são miguel (petrea subserrata), recobertos de flores azuis e igualmente diminutas. Parecem namorados que se deixam embalar pela brisa fresca. Passo quieta para não perturbá-los e não muito longe vejo  touceiras de azaléias (rhododrendon) na cor vermelha que se deixam abraçar pelas ramagens fortes de outra touceira das flores de são miguel, feito outro par apaixonado.
Mudo meu trajeto, não quero ser bisbilhoteira, e o zumbido das abelhas em torno das pitangueiras desviam meus olhos em direção ao som. Os galhos estão salpicados de flores brancas disputadas pelas abelhas, num vaivém frenético — um enxame em núpcias!
Ao lado das pitangueiras estão as amoreiras com seus galhos pintados de pontinhos negros, frutos maduros que atraem uma variedade de pássaros, alegres pretendentes a disputar os frutos mais doces.
Envergonhada por flagrar tantos amores, desvio meu passeio para o lado de outros canteiros. Lá, alguns lírios amarelos ameaçam se abrir. Parecem olhos a espiar as companheiras ao lado, as íris-azuis, que já exibem um quê do azul de suas flores, como meninas prestes a se despertar para o amor.
Os brincos-de-princesa (Fuchsia) que cobrem uma das alamedas, sem dúvida, são os grandes conquistadores. Se não bastasse se enlaçarem com as ramagens da primavera também se debruçam sobre as maria-sem-vergonha (impatiens walleriana), no mais explícito abraço de paixão. Lanço-lhe um olhar de riso disfarçado e juro que ele retribui com o roçar de seus galhos no meu braço.
Também posso jurar que por todos os cantos onde passo observo carícias, presencio entregas e olhares de ternura, pétalas que pulsam, ramos que se afagam.
Todo ano, nesta época, espero por esse cenário. Embora sabendo o que me espera, sou surpreendida por um espetáculo de emoção. É a natureza enamorada. É um clima de paixão e nele gosto de me entregar. 






domingo, 15 de julho de 2018

Gracias a la vida


Gracias a la vida
(A. M. de Godoy T.)

Este ano o verão me pareceu mais quente e mais ardido do que nos verões passado. Mesmo quando carregado de nuvens feito um acolchoado de algodão grosso e denso, capaz de esconder a luz solar, ainda assim os dias foram quentes, abafados e sufocantes.
O sol, inclemente, castigou de ardume as horas em que se pós a pino. Desagradável trabalhar no jardim, na horta, ou mesmo em lugar sombreado, pois até sob as árvores o desconforto do mormaço era como um sopro quente, igual ao que escapa de um forno em brasas quando as portas se abrem. Nessas horas podia-se ver o vapor que emanava da água do lago e pairava sobre ela como uma tímida fumaça. E a água parada dava um ar desolador que me enchia de preguiça.
As aves se escondiam. Nem o cheiro das bananas colocadas nos poleiros, ou os alpiste, sementes de girassóis, migalhas de pão, ou a água fresca no bebedouro, eram chamariz para os bem-te-vis, sanhaços, beija-flores, juritis e até mesmo para os sempre famintos pardais. Era a fadiga do verão, que a todos nos atinge com preguiça e nos tira toda vontade, até mesmo de comer ou de beber.
O gramado também mostrou seu cansaço. As folhas se enrolavam e pendiam murchas.
Algumas flores sentiram mais que outras. Beijinhos murchavam e pendiam de seus galhos igualmente murchos que lambiam o chão, suplicando por uma gota de água. Gladíolos, alguns retardatários da estação anterior, não sobreviviam mais que um dia. Suas flores uma a uma, dia após dia, iam se abrindo e fenecendo sem se expor a dois sois consecutivos. 
Já as dálias e as rosas, mantinham-se erguidas e altivas e exibiam-se com mais cor e vigor, como se o sol causticante lhes fosse uma dádiva, o que me fazia lembrar que para tudo há exceção. 
Berinjelas, jilós, alface, almeirão, couve murchavam mas se mostravam revigorados nas primeiras horas da manhã, assim como Prometeu, ao amanhecer, depois de uma noite de tormenta com os abutres.
Mas, quando isso mudava, quando o calor insuportável provocava as chuvas furiosas no final da tarde, o céu parecia desabar tamanho era o escândalo provocado pelo barulho dos trovões, raios e rajadas de vento e a chuva despencava em gotas grossas e com força. Nessas horas fechava meus olhos para não ver os raios mas não me livrava do som estrondoso dos trovões que fazia tremer o coração. Escutava o assobio do vento e se arriscava um olhar via seu açoite nas árvores a levantar pelos ares folhas, paus, tudo ao som de um uivo raivoso. Encolhida num canto da casa e curvada para frente, com as mãos apertadas uma contra a outra e espremidas entre os joelhos, ao mesmo tempo em que pedia aos céus proteção, imaginava o deus Thor furioso e medonho como sempre imagino serem os deuses nórdicos, arrastando seu enorme e pesado martelo. Assim, num misto de devoção que envolvia mais lendas do que crença, fazia minhas rezas mescladas de imagens aterrorizantes.
E quando tudo se acalmava e a chuva seguia tranquila, em pingos finos e ralos a bater no chão numa cadencia suave e o sol aparecia e enchia a tarde de claridade e no horizonte figurava um arco íris, a imagem que se descortinava era deslumbrante. Um presente. Uma dádiva da natureza.
Então meu coração se punha de joelhos e agradecia a todos os deuses por viver. Agradecia por ver, tocar, cheirar e, tão forte era a emoção que podia ouvir dentro de mim a melodia como vinda de longe, ecoando os versos em oração de Violeta Parra... ”gracias  a la vida, que me ha dado tanto; me Dio dos luceros, que quanfo los abro, perfecto distingo lo negro del blanco y en el alto cielo su fondo estrellado...”


quinta-feira, 12 de julho de 2018

Sementes do meu jardim

Sementes do meu jardim 
(A.M. de Godoy T.)         
  
Sementes do meu jardim
Ofereço ao tempo
Que se encarrega de semeá-las.

Algumas explodirão em luz e calor.
Revoada de encantos,
Manhãs que se alargam
Em sinfonia de aconchegos
Suavizando árduos caminhos.

Outras serão feito poeira
Apagando querências,
Cobrindo passados,
Abandonando passadas 
Num deserto de ventos e dunas.

São sementes do meu jardim !
E bons tempos as carregam !
Mas é o solo que as acolhe
O senhor dos seus destinos.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Devaneios (II)


 Devaneios (II)
(A. M. de Godoy T.)


Acredito que o lago se tornará um local de nidificação. Essa minha crença já atingiu as galinhas d'água. Todo ano elas aparecem para chocar e normalmente nascem de quatro a seis filhotes. Depois de crescidos abandonam o local e um casal permanece, não sei se sempre o mesmo. Sei que são ariscas e não se acostumam com a presença de humanos. Quando o caminho que contorna o lago começou a ser construído, muito próximo do trajeto havia um casal delas chocando e o trabalho foi interrompido por meses, até os filhotes se tornarem adultos, bater asas e sumir. Foi o primeiro casal de galinha d’água e a primeira ninhada que se criou desde que o lago se formou. Gosto de pensar que aqueles filhotes voltaram para ter seus filhotes, e os filhotes deles também voltaram para ter os seus, e nesses meus pensamentos já estou na décima geração de galinhas d’águas.

domingo, 1 de julho de 2018

Devaneios (I)


Devaneios (I)
(A.M. de Godoy T.)

Durante o final de semana tive por companhia duas garças brancas. Uma permaneceu a maior parte do tempo dentro d'água, na parte rasa do lago. Por vezes andava devagar e com elegância. Depois ficava à espreita, imóvel. Quando mergulhava o bico n'água o golpe era certeiro e nele trazia um peixe. A outra, sempre que a procurei, estava pousada em algum galho de angico, sempre nos mais próximos da margem do lago. Mudava de lugar, mas sempre empoleirada. A que pescava era de porte maior e se fartou de comer. Já a outra, jejuou. Foi a primeira vez que vi por aqui duas garças juntas. Quisera que fosse um casal!     
Quando deixei o lugar para retornar a cidade grande, a tarde começava a perder sua luz e meus pensamentos corriam soltos, relembrando tudo de bom que esse final de semana me proporcionou. Enquanto o carro atravessava o jardim, olhei o lago à minha esquerda e vi quando uma das garças, a de porte maior, levantou voo. E antes que o carro deixasse o lago para trás a outra fez a mesma coisa. Saímos juntas, cada uma de nós voando à sua maneira.

domingo, 24 de junho de 2018

Passarinho


Passarinho
(A. M. de Godoy T.)


Voa! Voa passarinho!
Voa que teu destino é voar.
Seu bailado é tua alma.
Voa, encha de riscos o ar.

Canta! Canta passarinho!
Canta que teu oficio é cantar.
Nos acordes do teu trinado
É que me ponho a sonhar.

Passarinho da cor do céu
E também da cor do mar.
Teu azul é minha guia
Não fujas do meu olhar.

Te vejo no manacá
E no alto do jatobá
Te ouço no romper da aurora
É quem ouço cantar agora.

Passarinho se eu pudesse
Ter asas para voar
Dançaria no teu bailado
Faria de ti o meu par.

Passarinho se tu pudesses
Atender ao meu chamado
Serias meu companheiro
No meu reino encantado.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Flor da lua


Flor da lua
(A. M. de Godoy T.)

Quando compro ou ganho uma planta geralmente recorro a sites ou livros de botânica pra saber um pouco do que estou levando para o meu jardim. Às vezes até faço uma pesquisa minuciosa. Não foi o que aconteceu quando a vinte anos atrás ganhei de uma tia uma muda de flor, que na verdade era um galho, e ao me entregar aquela muda disse ser da flor mais linda do mundo.
Essa minha tia era uma fofa. Achava tudo lindo e maravilhoso de modo que não levei a sério o que disse e por algum motivo que desconheço não procurei saber que flor sairia daquela muda, que lembrava um ramo de cacto.
Ela também falou pra plantar no pé de alguma árvore, pois era uma trepadeira, mas que não fosse um lugar de muita sombra. Fiz como me pediu. Plantei junto a uma primavera (bougainvillea) de cor sulfurina que fica perto de uma das entradas da casa.
Dois anos depois alguns galhos de pouco mais de 60 centímetros já haviam se formado. Com o passar dos anos mais galhos foram se formando, os mais compridos com até quatro metros de altura, emaranhados entre os galhos da primavera. Era de fato um cacto, diferente dos que conhecia no nordeste brasileiro. Seus ramos longos, embora lembrassem folhas, eram como hastes achatadas, “gordinhas”, bem firmes e sem espinhos. 
Foram muitos os verões em que vi vários botões pendurados nos galhos e que demorariam alguns dias para abrir. Quando voltava a vê-los me deparava com uma espécie de botão, formado por pétalas brancas, com cerca de 20 cm de tamanho, pendentes nos ramos. Assim mesmo, de “cabeça pra baixo”. Assim ficavam, não abriam com a luz do sol, murchavam e caiam no chão. Nunca vi nada mais sem graça e só mesmo a fofa da minha tia pra achar aquilo a flor mais linda do mundo. 
Por ironia do destino foi somente o ano passado, numa noite de sábado, por volta das onze horas, ao sair pra fora de casa, e por aquela porta onde fica a primavera, que ao acender a luz me deparei com o maior e mais estonteante espetáculo de beleza que poderia ver numa noite escura de verão. Trinta e seis flores brancas, delicadas e riquíssimas em detalhes, com mais de um palmo de diâmetro, resplandeciam entre os galhos da primavera. Tomei tamanho susto e gritei: - é a flor mais linda do mundo e acho que a fofa da minha tia deve ter suspirado um “até que enfim” onde quer que esteja nos braços da eternidade.
Corri no Google e fiquei sabendo que se trata de uma Hylocereus undatus da família da cactácea cuja flor abre uma só vez durante a noite e dura apenas algumas horas. Conhecida popularmente por vários nomes, entre eles rainha da noite, dama da noite e flor da lua, este pra mim o mais romântico e até lhe atribui um quê de trágico e pensei: uma flor de rara beleza, apaixonada, se entrega totalmente a lua e pela manhã cai exausta, pendurada nos ramos, e assim morre!
Soube mais, que está foi a flor que em 1988 levou Margaret Mee, uma inglesa que morou muitos anos no Brasil, considerada uma das maiores ilustradora botânica do século XX, aos 79 anos de idade, a uma expedição na região amazônica para desenhar a flor da lua em seu habitat natural.  
Não sei se minha tia soube quem foi Margaret Mee, mas ela sabia do que estava falando quando me disse se tratar da flor mais linda do mundo. 
    

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Capivaras: uma história de amor e ódio


Capivaras: uma história de amor e ódio
(A. M. de Godoy T.)

Esta história começou quando a primeira capivara apareceu na minha vida e está longe de ter um fim.  Foi numa tarde de verão. Estava no jardim quando a vi na beira do lago que margeia a mata. Ela pressentiu a minha presença e fugiu rapidamente mata adentro.
Depois disso dei de espiar o local na esperança de vê-la novamente.
Demorou alguns dias e ela voltou. E fugiu tal como da primeira vez.
Eu continuei espreitando o lugar.
Ela voltou novamente. E fugiu. Tornou a voltar. E tornou a fugir.
Nessas aparições e fugas o tempo que permanecia foi aumentando e se eu diminuía a distância que nos separava, ela fugia. Compreensiva, parei de insistir.
O tempo foi passando e sentindo-se segura passou a frequentar o lago. Era prazeroso observar a tranquilidade com que entrava na água, nadava, afundava, voltava para a margem, pastava um pouco, voltava a nadar e depois ia embora. Voltava outro dia, quando queria, e permanecia o tempo que desejava. Estávamos nos tornando íntimas.
Acontece que essa nossa intimidade deu-lhe a liberdade de trazer amigos. Um bando de seis capivaras aparecia no final de tarde para pastar na beira do lago e se refrescar nas suas águas.
Esperar por elas tornou-se um vício. Quando não vinham, ficava desapontada.
Pra quem não lembra, abro aqui um parêntese. Capivara é um mamífero roedor, de porte grande, da mesma família do porquinho da índia, este sim, um fofo! Já a capivara é um bicho feio, grandalhão, o corpo parece desproporcional em relação às patas e a cara, esta meio quadrada dando a impressão de um desenho mal terminado. A pelagem é densa, dura, de coloração escura, o que acrescenta mais feiura ao bicho.
E o tempo foi passando. E elas ganhando confiança. E da beira do lago passaram a frequentar o jardim.
Até ai tudo bem se não fosse o fato de que próximo ao lago, quase ao mesmo tempo em que vi a primeira capivara, plantei mais de duzentas mudas de palmito juçara (euterpe edulis), palmeira que já foi abundante nas matas da região e hoje proibida de corte por estar em extinção.
Eu fiz as mudas. Preparei a sementeira, esperei dias até germinarem, mais outros tantos e as transplantei para os balaios. Esperei muito mais até atingirem o ponto certo de plantio, abri e esterquei as covas. Plantei uma muda em cada cova, marquei o local com estaca de bambu, reguei e rezei para que vingassem.
Reza bem rezada e cuidados bem cuidados, as palmeiras cresciam bonitas e saudáveis. Quando estavam com um metro de altura o bando as descobriu e se fartaram, deixando apenas sete pés, que não sei o porquê deste número, exceto que é atribuído à conta de mentiroso e quisera eu estar aqui contando uma mentira.
Quando vi o estrago fui tomada de imensa raiva e uma nuvem negra pairou sobre minha cabeça. Tudo em minha volta parecia odioso. Esqueci os momentos de alegrias atribuídos àqueles bichos e roguei praga em todo o bando.
Fiquei de mal com elas. Ignorava-as.
Os palmitos sobreviventes receberam uma redoma feita de bambus e arames. Visitava-os várias vezes ao dia. Queria que elas vissem que eu estava por perto, vigiando.
Um dia, passeando em volta do lago onde cresce uma vegetação rasteira e arbustiva típica de banhado, avistei um local que parecia um roçado. Aproximei-me e deparei-me com duas capivaras adultas e um filhote que dormiam profundamente. A respiração delas, pausadas e tranquilas, arfava seus abdomens volumosos. E quando expiravam, faziam tremer os fios dos seus bigodes e as folhas de capim ao seu redor. O filhote estava aconchegado e com a cabeça enterrada na barriga de uma delas, formando um bloco volumoso e único. 
Afastei-me do lugar quase sem respirar, com o coração disparado e os olhos mareados. Os palmitos juçaras que me desculpem, mas voltei imediatamente a amar aqueles bichos.
Algum tempo se passou. Plantei mais palmitos juçaras, trezentos e cinquenta mudas pra ser mais precisa, em lugar completamente seguro do bando que continua a frequentar o lago e o jardim.
Há dois anos elas descobriram uma touceira de bananeira do mato (helicôneas) que levaram cinco anos para se adaptarem e florescerem como se deve: com vigor e abundância. Antes da descoberta estiveram esplendorosas. Abriram dezenas de cachos de flores que foi preciso retirar alguns pés pra abrir espaço entre os demais. Ano passado, na primavera, abriram doze cachos oriundos de alguns pés que foram enjaulados numa redoma de bambus e arames. Senti raiva novamente daqueles bichos e passei toda a primavera fazendo o que podia e sabia: ignorando-os.

E assim vamos vivendo, os palmitos, as helicônias, as capivaras e eu, numa história de amor e ódio que ainda está longe de terminar. Enquanto isso bebês capivaras crescem bonitos, saudáveis e bem nutridos.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

A dália e o besouro

 A dália e o besouro
(A.M.de Godoy T.)


O que queres seu besouro
Acaso buscas um tesouro?
Cuidado com estas patas
Tenho pétalas delicadas.

O que pensas encontrar.
Se nada tenho a guardar.
Sequer de tempo posso dispor
A encantar aqui com minha cor.

Sou bela e grandiosa
Neste meu reino sou exótica,
Mas de vida tão efêmera
Feito paixão passageira.

Seja breve então, tua procura
Que o amanhã é desventura.
Pois se para ti a vida segue
Para mim ela fenece.

sábado, 9 de junho de 2018

Com licença, mestres


Com licença, mestres
(A.M. de Godoy T.)


Ando com pensamentos estranhos a me tirar o sono. Fico a pensar como ficará nosso Canto depois da nossa partida. A propósito, nosso Canto é nosso pedacinho de terra, para onde vamos todos finais de semana. E tem mais, nosso Canto é nosso filho, e é bom esclarecer: só temos este. E lá se vão trinta anos de dedicação e zelo feitos pais dedicados e amorosos a defender a cria como convém. Agora, o protegemos, o temos em apreço e a ele nada falta. Está sempre perfeito.
Nosso Canto tem flores e também palmeiras onde canta a sabiá. Nosso Canto é nosso exílio! Por isso hoje me ponho a cismar como ficará depois, depois da nossa passagem para o lado de lá.
Como ficarão as flores? Elas necessitam de olhares constantes, regas diárias, podas em épocas certas. Precisam ser replantadas nas estações corretas, pois isso garante a florada esplendorosa e bela e periodicamente o solo precisa ser fertilizado e as ervas daninhas arrancadas. São trabalhos repetitivos, dia após dia, e não se pode faltar, negar, falhar, sem herdar, por conta disso, o cenário da devastação e do abandono.
A grama dá trabalho, carece ser aparada semana sim, semana não nos meses de novembro a abril. E depois, em agosto, pede terra preta derramada por cima, em camada bem fina, para crescer bonita na estação das flores.
A mata exige trabalho também. Árvores apodrecem, árvores secam. São as doenças, as pragas e se não forem combatidas, atacarão árvores sadias, sejam de porte alto, baixo, não importa, cairão pelo chão. E os cipós? Estes estão sempre rondando e se deixarmos enlaçarão as árvores e isso impedirá o crescimento normal e pode, até, levá-las a morte. Por isso precisam ser arrancados, mas atenção: tem jeito para ser feito, não pode ser a torto e a direito. E é assim, manejo constante. Sem trela. Sem descanso.
Sem os pais, como será? Não sei ainda, por isso sigo com a minha cisma, mas posso afirmar: — a várzea do nosso Canto tem mais flores e lá nossas vidas têm mais amores.
Como ficará o rio com o leito cheio de coisas por tirar: galhos, troncos e tantos objetos como plásticos e vidros carregados e depositados no remanso dos meandros? Se para limpá-lo é necessário adentrar-se, molhar-se até o peito, pisar o chão às cegas, sem medo e sem receio e ter forças para arrancar os trastes a cobrir o leito? Como ficará nosso rio vagaroso, de margens verdejantes e cheias de beijos floridos e jasmins cheirosos?
Não é diferente com o lago. Não mesmo! Plantas invasoras crescem e se proliferam rapidamente. Se não forem erradicadas ganharão força, e isso não é bom, nem para os peixes, pois terão menos área para nadar, e nem para as aves, pois o local não fica bom para nidificar.
E há os peixes do lago e também as aves e os ratões do banhado. Todos precisam ser alimentados. E não fica de fora a horta e o pomar e a casa e as estradas e os caminhos pela mata.
E também as pontes de madeira? Volta e meia precisam ser pintadas para se conservarem inteiras. O mesmo com a casa do mel e onde ficam as abelhas. Há de se fazer a limpeza, caso contrário, com o passar do tempo nada sobrará.
É por conta de todo o relato acima a minha cisma. E posso dizer mais, lá as matas e as flores têm mais vida. E minha vida, mais encanto e mais cores.
Às voltas com esses pensamentos estranhos venho passando vários dias. Minha alma não tem sossego. Não sei como ficará nosso Canto, órfão de pai e mãe, sozinho e sem amparo, solitário e abandonado. E mesmo pondo os pensamentos desse jeito, com rimas entremeadas a ermo, a dar a este texto ar de gracejo, ainda assim não tenho sossego e volto a me indagar: — e então, como será?
Como será ainda não sei. Sei apenas isso: fiz como você mestre Ziraldo, ao redigir reminiscência sem a vogal "o". Neste texto escrevi sem o “u”, a vogal derradeira e se não o fiz lindamente como você é por ter nascida Ângela e ser, ainda, aprendiz nessa seara das letras. E a você mestre Gonçalves Dias, direi mais: nosso Canto faz parte da terra verde e amarela. A nossa terra! E também peço para não morrer longe dela.