Capivaras: uma história de amor e ódio
(A. M. de Godoy T.)
Esta
história começou quando a primeira capivara apareceu na minha vida e está longe
de ter um fim. Foi numa tarde de verão.
Estava no jardim quando a vi na beira do lago que margeia a mata. Ela pressentiu
a minha presença e fugiu rapidamente mata adentro.
Depois disso
dei de espiar o local na esperança de vê-la novamente.
Demorou alguns
dias e ela voltou. E fugiu tal como da primeira vez.
Eu continuei
espreitando o lugar.
Ela voltou
novamente. E fugiu. Tornou a voltar. E tornou a fugir.
Nessas
aparições e fugas o tempo que permanecia foi aumentando e se eu diminuía a
distância que nos separava, ela fugia. Compreensiva, parei de insistir.
O tempo foi
passando e sentindo-se segura passou a frequentar o lago. Era prazeroso observar
a tranquilidade com que entrava na água, nadava, afundava, voltava para a
margem, pastava um pouco, voltava a nadar e depois ia embora. Voltava outro
dia, quando queria, e permanecia o tempo que desejava. Estávamos nos tornando
íntimas.
Acontece que
essa nossa intimidade deu-lhe a liberdade de trazer amigos. Um bando de seis
capivaras aparecia no final de tarde para pastar na beira do lago e se
refrescar nas suas águas.
Esperar por
elas tornou-se um vício. Quando não vinham, ficava desapontada.
Pra quem não
lembra, abro aqui um parêntese. Capivara é um mamífero roedor, de porte grande,
da mesma família do porquinho da índia, este sim, um fofo! Já a capivara é um
bicho feio, grandalhão, o corpo parece desproporcional em relação às patas e a
cara, esta meio quadrada dando a impressão de um desenho mal terminado. A pelagem é densa, dura, de coloração escura, o que acrescenta mais feiura ao bicho.
E o tempo
foi passando. E elas ganhando confiança. E da beira do lago passaram a
frequentar o jardim.
Até ai tudo
bem se não fosse o fato de que próximo ao lago, quase ao mesmo tempo em que vi
a primeira capivara, plantei mais de duzentas mudas de palmito juçara (euterpe edulis), palmeira que já foi
abundante nas matas da região e hoje proibida de corte por estar em extinção.
Eu fiz as
mudas. Preparei a sementeira, esperei dias até germinarem, mais outros tantos e
as transplantei para os balaios. Esperei muito mais até atingirem o ponto certo
de plantio, abri e esterquei as covas. Plantei uma muda em cada cova, marquei o
local com estaca de bambu, reguei e rezei para que vingassem.
Reza bem
rezada e cuidados bem cuidados, as palmeiras cresciam bonitas e saudáveis. Quando
estavam com um metro de altura o bando as descobriu e se fartaram, deixando
apenas sete pés, que não sei o porquê deste número, exceto que é atribuído à
conta de mentiroso e quisera eu estar aqui contando uma mentira.
Quando vi o
estrago fui tomada de imensa raiva e uma nuvem negra pairou sobre minha cabeça.
Tudo em minha volta parecia odioso. Esqueci os momentos de alegrias atribuídos àqueles
bichos e roguei praga em todo o bando.
Fiquei de
mal com elas. Ignorava-as.
Os palmitos
sobreviventes receberam uma redoma feita de bambus e arames. Visitava-os várias
vezes ao dia. Queria que elas vissem que eu estava por perto, vigiando.
Um dia,
passeando em volta do lago onde cresce uma vegetação rasteira e arbustiva típica
de banhado, avistei um local que parecia um roçado. Aproximei-me e deparei-me
com duas capivaras adultas e um filhote que dormiam profundamente. A respiração
delas, pausadas e tranquilas, arfava seus abdomens volumosos. E quando
expiravam, faziam tremer os fios dos seus bigodes e as folhas de capim ao seu
redor. O filhote estava aconchegado e com a cabeça enterrada na barriga de uma
delas, formando um bloco volumoso e único.
Afastei-me
do lugar quase sem respirar, com o coração disparado e os olhos mareados. Os
palmitos juçaras que me desculpem, mas voltei imediatamente a amar aqueles
bichos.
Algum tempo se
passou. Plantei mais palmitos juçaras, trezentos e cinquenta mudas pra ser mais
precisa, em lugar
completamente seguro do bando que continua a frequentar o lago e o jardim.
Há dois anos elas descobriram uma touceira de bananeira do mato (helicôneas) que levaram cinco anos para se
adaptarem e florescerem como se deve: com vigor e abundância. Antes da descoberta estiveram esplendorosas. Abriram dezenas de cachos de flores que foi preciso
retirar alguns pés pra abrir espaço entre os demais. Ano passado, na primavera,
abriram doze cachos oriundos de alguns pés que foram enjaulados numa redoma de
bambus e arames. Senti raiva novamente daqueles bichos e passei toda a
primavera fazendo o que podia e sabia: ignorando-os.
E assim vamos
vivendo, os palmitos, as helicônias, as capivaras e eu, numa história de amor e
ódio que ainda está longe de terminar. Enquanto isso bebês capivaras crescem bonitos, saudáveis e bem nutridos.